"Primeiro o espírito. Depois a técnica."
É de acordo com esta máxima que Karatecas de todos os cantos do planeta iniciaram suas jornadas nas Arte Marciais. Teoricamente, numa luta hipotética entre dois homens de mesmo nível técnico, vencerá aquele que demonstrar maior espiríto. Apenas para não criar dúvidas, deve-se entender por "espírito", aquilo que chamamos de atitude correta de luta, vontade, postura de vencedor.
O Karate é dividido em três pilares: Kihon (fundamentos), Kumite (luta) e Kata. Este último engloba os dois primeiros, tornando-se, assim, o mais importante dos três. Katas nada mais são do que seqüências de movimentos pré-estabelecidos que contêm, em suas aplicações, todos os "segredos" e toda a cartilha do Karate. É a simulação de uma luta imaginária contra diversos adversários ao mesmo tempo.
Para que um Kata tenha algum sentido ou desempenhe alguma função marcial além da óbvia beleza plástica dos movimentos, o praticante/atleta deve buscar, através da exaustiva prática diária, imbutir nesses movimentos o tal espírito ao qual a postagem se refere. Caso isso não aconteça, não passarão de movimentos executados aleatoriamente por alguém que apenas teve a capacidade de decorar aquela referida seqüência. Perde-se, então, toda a verdadeira essência da Arte Marcial que está contida naqueles golpes.
A seguir, colocarei três vídeos com o intuito de diferenciar três estilos e atitudes completamente diferentes entre si, de três consagrados nomes do Karate mundial. O primeiro é de Luca Valdesi, um dos mais respeitados nomes do Karate europeu e herói da WKF (World Karate Federation). O segundo é Mikio Yahara, ícone do Karate japonês e anteriormente citado neste blog. E, por fim, Hirokazu Kanazawa, o único habitante do Planeta Terra a ostentar o título de 10º. Dan em Karate.
Quando eu vejo o Valdesi executando o Kata Unsu, não vejo nada mais do que alguém que decorou os movimentos todos, treinou muito, aperfeiçoou a técnica em um nível extremo, forjou o corpo para suportar e dinamizar os movimentos, mas que, em momento algum, conseque me transmitir, de fato, saber o que está fazendo. É como assistir ao Cisne Negro e achar que a Natalie Portman é uma bailarina. Não, ela não é. Ela apenas treinou especificamente para desempenhar aquele papel. Luca Valdesi é isso: um ator do Karate. Ele interpreta o seu Kata como se fora um drama, alongando excessivamente nas pausas, dando seus toques pessoais onde não deveria e, acima de tudo, não consegue me transmitir em momento algum que está combatendo adversários, sendo este o maior de todos os defeitos do seu Kata. Não tem espírito, apenas muita técnica. Além, é claro, do patético fato dele ser obrigado a competir usando uma faixa vermelha em vez de sua própria faixa preta. Isto a princípio pode parecer besteira, mas acaba descaracterizando (e muito) a Arte.
Por sua vez, Yahara é o extremo oposto do Valdesi. Famoso por seu estilo de Kumite (luta) extremamente agressivo e incomum, ele consegue demonstrar todas estas características também em seu Kata. Sem mostrar grandes preocupações com a forma de suas bases ou de seus golpes, ele apenas busca - o tempo todo - sentir e transmitir que, ao vestir o seu Kimono, se transforma em outra pessoa, enfim, um verdadeiro guerreiro em campo de batalha. O melhor termômetro para medir o quão intenso é um Kata de um atleta é você tentar se imaginar no lugar de um dos seus adversários imaginários. E, neste caso, posso assegurar com absoluta certeza de que estar no meio de um Kata executado pelo Sensei Yahara seria um problema de proporsões inimagináveis. É claro que também ele é extremamente técnico. Afinal, trata-se de um Mestre de Karate com décadas de treinamento. Porém, fica nítido que ele não tem a menor intenção de florear o seu Kata apenas com o intuito de agradar aos árbitros. Ele simplesmente desenvolve os seus movimentos da forma como acredita que eles melhor funcionariam numa situação real, ou seja, é o Karate em sua essência mais pura. Não tenho dúvidas de que o Sensei Yahara comprovaria o segundo parágrafo desta postagem.
Kanazawa provavelmente é o mais completo karateca de todos, e o seu Kata comprova esta afirmação. Desde o momento em que ele anuncia o nome do Kata de forma calma, traqüila e nítida, fica óbvia qual será a grande diferença dele em relação aos dois anteriores. Mesmo não tendo nem a plasticidade nem o vigor físico do Valdesi, tampouco a agressividade e a combatividade do Yahara, Sensei Kanazawa deixa bem claro o porquê de ser o único terráqueo a ser reconhecido e respeitado como 10º. Dan de Karate. Seu Kata já ultrapassou todas as barreiras do técnico e do físico, estando, agora, num nível totalmente espiritual. Eu explico: no Karate, como em qualquer outra Arte, primeiro aprendemos a técnica, depois a forjamos e lapidamos, para, no fim, nos livrarmos dela e criarmos, assim, um novo Karate. É neste estágio que se encontra o Karate do Sensei Kanazawa. Porém, o mais importante que devemos entender é: não adianta tentar copiar o Kata dele tal como está agora. Para se atingir este nível, o praticante deve, obrigatoriamente, passar por todas as etapas de aprendizado, para, quem sabe, no final de sua vida conquistar o maior prêmio que o Karate pode nos deixar: saúde.
Concluindo, fiz um exercício mental de me imaginar no lugar de algum leigo que eventualmente venha a ler meu blog. Certo estou de que, aos olhos deste leigo, o melhor dos três Katas seria o do Valdesi. Creio que seja o mesmo caso de colocarem na minha frente um bom quadro retratista e uma obra-prima abstrata. Meus olhos desinformados se deixarão impressionar pela primeiro impacto visual do belo retrato, fazendo com que eu ignore (por conta da incompreensão) os infinitos atributos da outra obra. É assim que funciona o ser humano, sempre extremamente visual. Não a toa que, dos nossos cinco sentidos, o que mais nos faz falta e aquele que mais tememos perder é a visão. Contudo, cabe ao praticante de Karate tentar, na sua longa jornada, se livrar dessas limitações humanas e mundanas e transformar-se em alguém melhor do que ele já fora um dia: um verdadeiro Karateca.
ISTO É KARATE!
OSS!
Adorei ler essa postagem.... parabéns sensei, muito bem escrito e muito bem comparado...
ResponderExcluirSó uma coisa, na comparação com o Cisne Negro, vc não acha que ficaria melhor falar que é igual a Natalie Portman tentando ser o cisne negro igual no começo do filme? pq do jeito que vc escreveu, parece que vc desmerece o treinamento pelo qual ela passou para fazer o filme...
Obrigado Paulo. E, acredite, não quis desmerecer o treinamento da Natalie. Mesmo pq, imagino que tenha sido muuuito duro. Mas, por mais duro que tenha sido, não é o suficiente para a chamarmos de bailarina, certo? Por outro lado, acho que é uma das 3 maiores atuações femininas da história do cinema. Isso é pouco? Abraços e obrigado. Oss.
ResponderExcluirParabéns pela postagem Sensei.. isso é Karate ! Como muitos dizem, a verdadeira arte começa após a faixa preta.. Mas por mais que ainda nao a tenha atingido, sinto a força espiritual que os mestres japoneses carregam por trás Kata. É vendo esse tipo de demonstração que a gente fica impressionado, pensando "poxa, temos muito a aprender"... e é esse sentimento que nos leva cada dia a treinar com o espírito não só dentro mas fora do Dojo.
ResponderExcluirOSS !
Eu gosto mais do Yahara... =)
ResponderExcluirÉ, Ana, tratando-se de UNSU, acho que concordo com vc. Beijos. Oss.
ResponderExcluirOss
ResponderExcluir