Antes de mais nada, vocês não fazem idéia de como foi difícil selecionar uma única frase que cumprisse o propósito acima mencionado. Durante todo o filme, são proferidas diversas que, preciosamente, também poderiam ocupar tal cargo. Porém, o que fez com que eu optasse por esta, foi o debate que ela me sugere internamente. Tentarei explicar: a cultura japonesa, como todos sabem, se caracteriza, resumidamente, pela busca constante da perfeição em todos os aspectos possíveis. Como o próprio filme se incumbe de nos dizer,
"desde a hora em que acordam, até a hora em que vão dormir", existe - nos japoneses - o cuidado e o desejo de se chegar o mais próximo possível do que se define como
perfeição. E é exatamente neste ponto que um sensacional debate pode ser desenvolvido:
o que vem a ser, afinal, "perfeição"?
Não vejo como se fazer uma boa análise do filme sem que se tenha conhecimento destas nuances culturais. Limitar-se a analisar o filme tecnicamente, sempre nos levará à uma leitura limitada e empobrecida, fazendo com que a grande obra que se encontra justamente escondida nas peculiaridades em questão, nunca venha a tona. Alguns meses atrás, num debate de Orkut, um sabichão virtual disse-me a seguinte pérola:
"um bom filme nunca vai se calcar em nível de conhecimento temático". Numa rápida leitura, até que soa bonitinha. Porém, ao olhar mais de perto, além de escancarar a preguiça em aprender, ela também nivela por baixo toda e qualquer discussão que se possa ter sobre um filme. Desenhando: eu não preciso entender de
Ballet para apreciar
Cisne Negro, mas é óbvio que, se entendesse, enxergaria dezenas de detalhes grandiosos que, certamente, não foram inseridos lá gratuitamente. E, negar-se a aceitar este fato, me soa como justificativa para a própria ignorância.
Voltemos: depois de uma vida inteira dedicada à busca constante da perfeição, o líder dos
Samurais,
Katsumoto, é contemplado, em seu leito de morte, com o vislumbre de que, na verdade, tudo aquilo que ele julgava ser imperfeito, na verdade eram suas próprias imperfeições sendo exteriorizadas. E a reconfortante sensação que esta visão lhe traz, faz com que toda sua vida ganhe sentido, transformando, assim, sua morte em algo luminoso e redentor.
A pergunta que se segue: por que, então, se dedicar a aperfeiçoar-se constantemente em todas as suas rotinas e treinamentos, se, na verdade, as imperfeições estão dentro de nós mesmos?
Fazendo um paralelo com o
Karate, costumamos dizer que o aluno deve usar força máxima o tempo todo. Porém, depois de muitos anos de treinamento, ele irá descobrir por conta própria que, na verdade, quanto mais relaxado ele estiver, mais o seu
Karate irá fluir. Assim, podemos concluir que, de acordo com o pensamento
Samurai, atinge-se o objetivo maior apenas se sua vida tiver sido verdadeiramente dedicada àquele propósito, não sendo possível obter a recompensa de uma morte contempladora se durante a vida não houve essa busca.
O Último Samurai nos conta a história do Capitão do Exército Americano
Nathan Algren (Tom Cruise, impecável) que, após ser enviado ao Japão com o intuito de guerrear contra os tais guerreiros nativos, se vê capturado e apriosionado pelo inimigo, tendo então que, obrigatoriamente, conviver com aquela cultura - para ele - tão estranha.
Mesmo utilizando-se da mesma premissa de outra grande obra do Cinema
(Dança com Lobos, 1990), e certamente servindo de modelo para outro excepcional filme que viria anos depois
(Avatar, 2009), O Último Samurai consegue se destacar neste universo já explorado justamente por conta das peculiaridades extremamente bem exploradas da cultura japonesa. Vejam, por exemplo, em um determinado momento observamos um general japonês sendo decapitado "agradecidamente" pela espada do seu inimigo. Aquilo que, aos nossos olhos ocidentais, poderia soar como uma violência gratuita e desnecessária, é habilmente convertido em uma tocante lição sobre o significado oriental da morte, honra e respeito.
Ao estabelecer
Katsumoto como um sujeito demasiadamente complexo, inteligente e instigante, que vê na oportunidade de, ao conhecer o seu inimigo, tirar valiosas lições de guerra e de vida, o coeso e irretocável roteiro de
John Logan abre caminho para este que, sem dúvida, é o melhor trabalho de um coadjuvante daquele ano.
Ken Watanabe consegue, com maestria, compor um personagem instrospectivo e ao mesmo tempo comunicativo e alegre, sem que, com isso, se enfraqueça diante dos nossos olhos e dos olhos inimigos. Sábio com as palavras,
Katsumoto sabe exatamente como deve proceder para atingir os seus objetivos, e consegue exprimir seus sentimentos da maneira mais bela possível: no olhar.
Há uma maravilhosa e singela cena que compõe perfeitamente essa idéia: após ter passado todo o inverno "aprisionado" na aldeia dos Samurais,
Algren é escoltado até a cidade por um comboio organizado por
Katsumoto. Ao chegar lá, este, com os olhos marejados, olha nos olhos do americano, devolve-lhe um livro que havia tomado emprestado e diz:
"quando você chegou aqui, você era meu inimigo". Assim, sem necessidade de abraços efusivos ou de verbalizadas declarações de amizade eterna,
Katsumoto transmite, com clareza, o profundo sentimento de respeito, amizade e gratidão que passou a nutrir por aquele que, meses atrás, queria matá-lo.
Ken Watanabe nos presenteia com uma atuação contida e minimalista, destacando-se, justamente, por embutir suas emoções e seus sentimentos em seus pequenos gestos, olhares e trejeitos. Decisão esta que se mostra acertada pois, de fato, corresponde precisamente à uma das maiores características do povo japonês. Com isso, o talentoso ator além de roubar a cena toda vez em que aparece na tela, conquistou sua primeira indicação ao Oscar, e obteve o reconhecimento que lhe permitiu participar de alguns outros grandes projetos cinematográficos, tais como,
Memórias de Uma Gueixa,
Cartas de Iwo Jima e
Batman Begins.
Já o diretor Edward Zwick, mostra ter feito corretamente o dever de casa em
Tempo de Glória e
Lendas da Paixão, conseguindo, neste, unir a precisão técnica do primeiro com a sensibilidade e emoção do segundo, nos brindando, assim, com um filme que consegue, em momentos distintos, provocar o riso, a comoção, a apreensão e nos deixa boquiabertos diante da magnitude do que estamos vendo.
Mas nem de longe os maiores méritos de
O Último Samurai são suas virtudes técnicas, e sim o fato de ter mostrado, sensivelmente, um maravilhoso (e muito difícil de ser retratado) período da cultura japonesa. E esse fato se torna cada vez mais inquestionável (para mim), à medida em que começo a me recordar de outras obras que corroboram com este argumento. Lembro-me que, um tempo atrás, li um pequeno livro chamado
A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. Trata-se da história de um filósofo alemão que parte para o
Japão em busca de aprimorar-se na prática do
Zen. Lá chegando, ele opta, entre muitas possibilidades, pela prática do
Tiro Com Arco. Depois de um tempo praticando, dá-se conta de que o seu Mestre pouco se importa com o resultado do seu tiro, mas sim com o processo que o precedia, dizendo-lhe, categoricamente, que "acertar o alvo era apenas um detalhe insignificante".
Justamente por captar com maestria essa essência antagonicamente óbvia e confusa,
O Último Samurai se destaca, sobremaneira, neste universo tão poluído de filmes relacionados à cultura oriental, fazendo com que toda e qualquer análise que não observe tais atributos, seja, fatalmente, pobre diante da grandeza e da importância de tais "detalhes".
E, para provar que o filme realmente tem um efeito devastador em mim, ao invés de ficar procurando as palavras perfeitas para encerrar essa postagem, vou encerrá-la bruscamente, de forma não-planejada, justamente para, quem sabe, torná-la tão humana e imperfeita quanto qualquer
Samurai.
Até mesmo o último.
OSS!